Segundo Girard, o mecanismo dos rituais de sacrifício dissimula as bases da cultura. O ritual torna a vítima sagrada. Abatê-la é um crime, mas sem o abate ela continua a ser mais um entre os elementos da crise e não cumpre o papel a que se destina – nesse caso, a violência se mantém como espectro de mil cabeças ameaçando a todos com a possibilidade de contágio.
O que se procura mascarar nesses rituais, afirma, é própria violência, a violência fundadora. Para mantê-la afastada da comunidade, elege-se a “boa vítima”, que servirá à encenação da crise (simbolização do início do contágio, disseminação da cólera etc.). Deve ter alguma semelhança com os integrantes do grupo social e, ao mesmo tempo, ser sacrificada em um desejo unânime, impossibilitando que qualquer pessoa, de dentro ou de fora, vingue sua morte.
O rito sacrificial não seria, portanto, evento puramente simbólico, estetização de um drama qualquer, mas instituição formal de um mecanismo de defesa, no qual a “boa vítima” substituiria aquele a quem a cólera se dirige, o rival, portador da violência perpétua das vinganças.
A sociedade procura desviar para uma vítima relativamente indiferente, uma vítima ‘sacrificiável’, uma violência que talvez golpeasse seus próprios membros, que ela pretende proteger a qualquer custo. p. 14.
Vários indícios sugerem que esta capacidade de encontrar objetos alternativos não é exclusiva da violência humana. Lorenz, em L´agression, refere-se a um tipo de peixe que não pode ser privado de seus adversários habituais – seus congêneres machos, com os quais disputa o controle de um certo território – sem dirigir suas tendências agressivas contra sua própria família, acabando por destruí-la.
Convém perguntar se o sacrifício ritual não se baseia em uma substituição de mesmo tipo, embora em sentido inverso. Podemos pensar, por exemplo, que a imolação de vítimas animais desvia a violência de certos seres que se tenta proteger, canalizando-a para outros, cuja morte pouco ou nada importa. p.13.
Poderíamos abrir parênteses e discutir o assassinato de animais, e como as mulheres, ao lado dos rebanhos, são, na maioria dos grupos observados, patrimônio masculino, moeda de troca, objeto comum na história dos sacrifícios – rituais ou políticos. Esse é o centro do nosso estudo, e preparamos terreno para aprofundá-lo.
De qualquer forma, Girard trata o sacrifício como estância política. E considera que o sistema judiciário, por exemplo, apenas disfarça, com maior ou menor competência em cada caso, os elementos fundamentais em jogo: a necessidade de deslocar a violência das estruturas sociais, o risco de contágio por meio da rivalidade mimética etc.
As cenas bíblicas são férteis à sua análise. Junto ao esforço de compreender as tragédias sob a hipótese da crise sacrificial (de que falaremos adiante), sugerem que o pensamento ocidental seria constelação em torno de um Sol Obscuro: a violência primeira, origem de todo sacrifício. Portanto, narrativa mítica, mesmo quando se declara científica, alheia aos fatos religiosos e às superstições.
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