Archive by Author

ritual marítimo

2 maio

pinto pra dar uma face ao medo – paula rego

paula rego

No poço, estava um peixe que comeu a mulher de um trago só, sem a mastigar. Logo a seguir, passou pelo poço o criado do rei, que pescou o peixe. Na cozinha do palácio, as criadas, a arranjarem o peixe, descobriram a mulher dentro do peixe. Como o peixe comeu a mulher mal a mulher se matou e o criado pescou o peixe mal o peixe comeu a mulher e as criadas abriram o peixe mal o peixe foi pescado pelo criado, a mulher não morreu e o peixe morreu. – adília lopes

pesadelos. queriam roubar meu bebê. pensei em esconder no armário. os cílios da criança – imensos – caíam e nasciam de novo na palma da minha mão. tive tanto medo, e quis fugir. vocês duas, aninha e rô, iam comigo num carro branco (ambulância?). conto o sonho e ficamos presas, de cabeça pra baixo, no quarto de luz branca fortíssima — iluminação de hospital. queriam nos puxar de lá com tesouras.

outra fuga: quarto escuro, e coloco a criatura-filhote, fragilíssima, enrolada em panos dentro do armário. tenho medo que morra sufocada. ouço o perigo lá fora — mais perto, mais perto. grito muito: mãe, por favor, me acorde. por favor, me acorde. sonho dentro do sonho. demoro a voltar à superfície. assustada, não quero mais dormir.

paula rego misturada às alucinações entorpecidas de antes. e fiapos de ideias-martelo.

a “mulher” é uma imagem

29 abr

sharon stone revive ophélia p/ o fotógrafo de moda tony duran

: a imagem de uma mulher morta. a frase é da márcia tiburi,  amada, NESTE ARTIGO.

ana, roberta e yo iremos à pinacoteca assistir à exposição da paula rego

lembrei agora de uma das epígrafes do livrinho inédito da rô, saturações de saturno:

podemos chorar à frente de um quadro, mas não resolve nada – gonçalo m. tavares

curiosidade. sonhei com a lilian aquino: usava na cabeça um navio-dobradura.  o lugar da pintura onírica: sala de aula abarrotada de gente. e abigail na fila do meio.

entre as presenças, o deputado francisco everardo de oliveira silva (tiririca), encostado na parede – fileira bem longe da porta. ao fundo, na turma da bagunça, um político sem nome. a professora pergunta: quem é a favor da legalização do aborto? alvoroço. disse que disse. lilian vai falar. acordo. mais um daqueles sonhos de regresso à superfície.

deixo a márcia ecoar:

Nos últimos 200 anos, a representação de Ofélia parece seguir certa unanimidade, ou bem Ofélia é representada louca ou morta. (…) A morte como forma central do imaginário dos homens sobre mulheres é a questão central deste trabalho interessado em compreender os fundamentos da necrofilia cultural, desse “padrão cultural de se matarem mulheres” que aparece na pesquisa sociológica de Eva Blay e é tão bem exposto na história da arte nessa espécie de culto da mulher cadáver.

Que a imaginação seja “mulher” impõe uma correspondência fantasmática e nociva para as mulheres: a imagem é metonímia para a mulher. A mulher é vista como imagem, eis também um modo de matar outra coisa que ela possa ser, Continue lendo

bracelete de ouroboros

21 abr

cia. nova de teatro apresenta heiner muller

Heiner Müller em Repertório: compilação de Medeamaterial, Hamletmaschine e Descrição de Imagem. Isso foi em 2009, experiência estonteante. De madrugada, lendo e folheando artigos pra acrescentar às nossas referências bibliográficas, lembrei de um em especial, de pessoa queridíssima. Adianto que é um estudo precioso a partir da construção de Ofelia. Sim, sim, a Ofelia. E deixo o resto em suspenso, pra aguçar tua curiosidade e te trazer de volta. A epígrafe era justamente um trechinho do Hamletmaschine. Ah, o bracelete de Ouroboros. Quando voltar, te conto. Beijíssimos, Mai.

medeias?

19 abr

É possível que a espacialidade seja a projeção da extensão do aparelho psíquico. A psique é a extensão, nada sabe acerca disso. Anotação de FREUD, poucos dias antes de morrer. Em: NASIO, J.D. Meu corpo e suas imagens. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2009.

Nem sei por que escolhi essa epígrafe. Talvez descubra mais tarde. Voltei pra contar dos planos neste mar de tribulações que não está pra peixe.

Articular as datas de três mulheres cheias de compromisso não é das tarefas fáceis. Sugiro edições extras em dupla, documentadas para a terceira ponta – de modo que assim não esfriamos os motores. E depois, no finalzinho do mês, o encontro da tríade. Ou no dia 1º de maio? A saber.

Medeias?

Rô também cogita a Medeia.

Preciso confessar. | Ontem de manhã, O Exorcista caiu sozinho da estante. Tenho medo desses sinais. Apesar de tudo, não descarto a hipótese. Mesmo com a Sra. Vogler em mente. Aquela que resolveu emudecer interpretando Electra.

memórias e decisões

13 abr

3 nornas

Coisa passada: Ciclo de Palestras Cinema e Feminino – organização e curadoria de Roberta Ferraz. Entre os palestrantes, Ana Rüsche falaria sobre A Caixa de Pandora, e Maiara Gouveia, em parceria com a anfitriã, do Anticristo. Foi exatamente nesse dia que eu conheci a Renata Huber, ponta solta deste quadrado fictício.

Antes, bem antes, quase publiquei um livrinho de ensaios, passeio literário no cinema de Lars Von Trier. Durante os 7 anos que me trazem até aqui, a intimidade com o cineasta aumentou tanto quanto a vontade de escrevê-la. Experiências muito pessoais, dentro e fora do domínio estético, e a beberagem das influências do artista na própria fonte – por exemplo, Nietszche, Carl Dreyer, Bergman, Tarkovsky – salpicam no encontro quase quádruplo a claridade do anúncio.

(…)

Ana Rüsche propõe a reescrita individual de uma tragédia. Roberta Ferraz sugere outra, criada pelas três, em 30 dedos. Maiara, ensaísta de braços abertos e mãos vazias, aceita as duas propostas e anuncia texto e aula para cada um dos filmes do Lars Von Trier, todos sob a chave violência e representações do feminino, o que , aliás – desconfia – é o melhor ângulo pra filmar a experiência trágica do artista querido.

Quatro tragédias futuras. Novo ciclo de palestras. E o resto é vertigem.

de repente, no último verão

11 abr

sei de quem assiste ao canibalismo num prazer incontido, ou pura indiferença – o que vem a dar no mesmo, na maior parte dos casos. o animalesco são os outros, diria um sartre sem metafísica.

com o pano encharcado de sonífero, o poder se infiltra nos fatos, pisando macio. o metal cai como uma luva à técnica, e quem detém a narrativa e a lâmina recorta os fatos, numa tentativa de esconder a violência do voyeur. ou a perversão do suposto poeta, que usa as formas de uma mulher como escudo e isca.

nem a lobotomia retira do mundo esse retrato. seria inútil manter a testemunha no hospício. o poço da verdade é um vulcão ativo. cedo ou tarde, um espirro faz voar uma borboleta no oriente, e as placas tectônicas sentem cócegas.

é um filme ótimo, por muitos motivos.

nem te contei, mas também falamos ontem sobre ler de tudo e  ver tudo, com a voracidade de quem pretende atingir alguma coisa bem além do óbvio, do poncif abominado pelos artistas (falamos do poncif, depois grudo aqui). do suicídio de safo, por exemplo – a veracidade controversa do acontecimento, e apropriação estética desse tópico pelos modernos e moralistas de toda sorte.

a palavra é sim um artigo de luxo quando em certas mãos, e pode inventar notícias onde existe vácuo, e sufocar pontos essenciais, que mudariam tudo: a história legitima a violência, que está longe de ser a chacina ou o estupro – consequências visíveis e aterradoras da violação cotidiana, do canibalismo diário. é a lava a derramar-se.

preciso ver de novo a medeia do pasolini. nada adianta: a frase bagunça os papéis sobre a mesa. nada adianta – repete a protagonista do anticristo, do lars von trier, outra medeia.

nada é tão fácil quanto o que se afirma, com pontos finais pra encerrar o caso. a reflexão está sempre ao redor das linhas. em outro lugar. no mais inaudível dos diálogos. saber ouvir o silêncio e saber ouvir, querer ouvir, sem ficar estático, é toda a ética necessária.

seguimos. tragédias a reescrever. os dramas que reencenam mitos. etc. beijos. maiara.

tragédia e lanchinhos artesanais

10 abr

se apenas esta voz pudesse parar, esta voz sem sentido que te previne de não ser nada, que simplesmente te previne de não ser nada e de não ter lugar beckett

ando viciada em beckett. nem queria falar a respeito disso, mas talvez seja bom deixá-lo aqui, quase uma charada: decifra-me ou te devoro.

mulheres nas tragédias. dramaturgos e cineastas geniais. planos para o grupo: o canek ficou quietinho, ouvindo tudo e dando carícias – às vezes – uns olhares derretidos | como quem entende que é difícil ser gente, e ainda mais ser mulher. você deve notar que estou te enrolando, e não disse nada sobre as nossas decisões criativas (guardo segredo? ou espero que a ana conte?). tenho meus motivos. por enquanto, só anoto que a rô, gripadinha, fez falta, e que a tarde foi deliciosa: cheia de assunto e futuros desenhados. em tempo: ana rüsche foi quem assou o pão e temperou. hum, poetas são poetas em tempo integral. te encontro depois. maiara.

Quem dera ser um Peixe

3 abr

ex blogue da anitcha: http://peixedeaquario.zip.net

Em 2009, lendo A Violência e o Sagrado, esbocei o plano de escrever uns ensaios relacionando as ideias de René Girard ao pensamento de Nietszche, Bataille e Lou Andreas Salomé.

Nas frestas do texto, sem alarde, Nietszche assobiou uns cantos dionisíacos, especialmente durante a análise da tragédia  As Bacantes, de Eurípedes. Bataille murmurou “continuidade” no sopro posterior à “perda violenta das diferenças”, e a ficção dos pressupostos biológicos, exposta a partir das ideias de Lévi-Strauss, evocaram tanto Bataille quanto Lou Andreas Salomé – a tal biologia como discurso da cultura e elemento de composição estética.

Freud e Lévi-Strauss não se desenharam nas frestas, como alucinações da memória ou anúncio. Ambos são berros, personagem nomeadas, capítulos à parte no livro de René.

Rabiscando ambições, deu-se o desejo de dividir leituras, bater papo e a intenção de montar o grupo. Girard, autor controverso, bastante controverso, oferece um passeio nos meandros do pensamento ocidental capaz de atiçar o mais apático entre os curiosos. Sugeri como entrada ao banquete. Ana Rüsche e Roberta Ferraz toparam a empreitada e decidimos abrir os trabalhos com o tema “Violência e Representações do Feminino”.

No sábado, dia 26 de março, nos reunimos na casa da Roberta e montamos o formato da coisa toda: filmes incríveis no meio da sequência de estudos e evento mensal para compartilhar resultados. Periodicamente, postaremos aqui uns textos, relatos e outras borbulhas.

PS. quarteto transformado em trio: Renata Huber, queridíssima, não poderá participar conosco das atividades. No próximo encontro,  05 de abril, seremos oficialmente triângulo amistoso, tríade de intenções, cantarolando “corais pra enfeitar tua cintura/borbulhas de amor pra te encantar”. Note: bailarinas de legging preta ao fundo.

OBS. O peixe da photo é o símbolo do ex blogue da Anitcha, Peixe de Aquário – Coisa de escrita dos astros. Maiara recolhe a estrelinha profética.

a violência e o sagrado

3 abr

Segundo Girard, o mecanismo dos rituais de sacrifício dissimula as bases da cultura. O ritual torna a vítima sagrada. Abatê-la é um crime, mas sem o abate ela continua a ser mais um entre os elementos da crise e não cumpre o papel a que se destina – nesse caso, a violência se mantém como espectro de mil cabeças ameaçando a todos com a possibilidade de contágio.

O que se procura mascarar nesses rituais, afirma, é própria violência, a violência fundadora. Para mantê-la afastada da comunidade, elege-se a “boa vítima”, que servirá à encenação da crise (simbolização do início do contágio, disseminação da cólera etc.). Deve ter alguma semelhança com os integrantes do grupo social e, ao mesmo tempo, ser sacrificada em um desejo unânime, impossibilitando que qualquer pessoa, de dentro ou de fora, vingue sua morte.

O rito sacrificial não seria, portanto, evento puramente simbólico, estetização de um drama qualquer, mas instituição formal de um mecanismo de defesa, no qual a “boa vítima” substituiria aquele a quem a cólera se dirige, o rival, portador da violência perpétua das vinganças.

A sociedade procura desviar para uma vítima relativamente indiferente, uma vítima ‘sacrificiável’, uma violência que talvez golpeasse seus próprios membros, que ela pretende proteger a qualquer custo. p. 14.

Vários indícios sugerem que esta capacidade de encontrar objetos alternativos não é exclusiva da violência humana. Lorenz, em L´agression, refere-se a um tipo de peixe que não pode ser privado de seus adversários habituais – seus congêneres machos, com os quais disputa o controle de um certo território – sem dirigir suas tendências agressivas contra sua própria família, acabando por destruí-la.

Convém perguntar se o sacrifício ritual não se baseia em uma substituição de mesmo tipo, embora em sentido inverso. Podemos pensar, por exemplo, que a imolação de vítimas animais desvia a violência de certos seres que se tenta proteger, canalizando-a para outros, cuja morte pouco ou nada importa. p.13.

Poderíamos abrir parênteses e discutir o assassinato de animais, e como as mulheres, ao lado dos rebanhos, são, na maioria dos grupos observados, patrimônio masculino, moeda de troca, objeto comum na história dos sacrifícios – rituais ou políticos. Esse é o centro do nosso estudo, e preparamos terreno para aprofundá-lo.

De qualquer forma, Girard trata o sacrifício como estância política. E considera que o sistema judiciário, por exemplo, apenas disfarça, com maior ou menor competência em cada caso, os elementos fundamentais em jogo: a necessidade de deslocar a violência das estruturas sociais, o risco de contágio por meio da rivalidade mimética etc.

As cenas bíblicas são férteis à sua análise. Junto ao esforço de compreender as tragédias sob a hipótese da crise sacrificial (de que falaremos adiante), sugerem que o pensamento ocidental seria constelação em torno de um Sol Obscuro: a violência primeira, origem de todo sacrifício. Portanto, narrativa mítica, mesmo quando se declara científica, alheia aos fatos religiosos e às superstições.